Raquel Henriques, presidente da Associação de Professores de História, considera que foram dados passos positivos na revisão curricular e lembra que a História tem de fazer parte de um tronco comum obrigatório.
História e Geografia não serão fundidas e terão mais minutos no horário escolar. A Associação de Professores de História (APH) ficou satisfeita com a decisão, mas espera que a divisão dos tempos letivos para as duas disciplinas não seja colocada nas mãos das escolas.
Raquel Henriques, presidente da APH, professora de História no Ensino Básico e Secundário e de Didática e Metodologia da História no Ensino Superior, defende que a História deve ter uma carga horária definida pela tutela para evitar "arbítrios, incertezas e disputas entre colegas no mesmo local de trabalho".
A APH não desiste das suas pretensões. História deve integrar um currículo nacional obrigatório, ter total independência, e a formação dos futuros professores da disciplina deve ser revalorizada. Raquel Henriques diz que é necessário devolver aos docentes a responsabilidade de agirem como intelectuais e não como burocratas da educação.
"Os professores foram sendo sobrecarregados com responsabilidades burocráticas que, efetivamente, lhes retiram o tempo que é necessário para ler, para pensar, para produzir materiais adequados às necessidades dos alunos, para ir a congressos, para perceber o que de novo se está a investigar", sublinha.
EDUCARE.PT: Mais horas para História no 7.º e 9.º anos. Mais uma aula por semana. Satisfeita com a decisão?
Raquel Henriques (RH): Nesta Revisão da Estrutura Curricular intercalar, realçamos de positivo o não haver fusão entre a História e a Geografia, o facto de permanecerem como áreas científicas e disciplinares autónomas. Até ao momento foram atribuídos mais 90 minutos, ou seja, mais dois tempos letivos de 45 minutos para o conjunto das disciplinas de História e Geografia, um desses tempos a ser aplicado no 7.º ano e outro no 9.º ano. A carga horária conjunta de História e Geografia fica assim em cinco tempos para o 7.º e 8.º anos e em seis tempos para o 9.º ano. Foi uma decisão muito positiva, mas preocupa-nos que a tutela ainda nada tenha dito sobre a distribuição específica da carga letiva, em cada ano de escolaridade, para cada uma das disciplinas.
E: Teme que haja uma "disputa", já que as escolas podem optar por dar mais horas a História ou a Geografia? A tutela deveria ter sido mais específica nessa divisão?
RH: Desde 1998, quando a História sofreu uma redução de três tempos letivos de 50 minutos, no conjunto do 7.º, 8.º e 9.º anos de escolaridade, que a Associação de Professores de História tem vindo a reivindicar uma valorização das Ciências Sociais e Humanas e mais carga horária para a disciplina. Tal como tem vindo a reivindicar que exista uma disciplina de História Contemporânea para as quatro áreas dos cursos científico-humanísticos do ensino secundário, atendendo a que o ensino da História é um instrumento precioso para compreender a realidade, para combater a hegemonia da cultura de massas e o absentismo cívico, para consolidar o regime democrático.
Esperamos que esta revisão da estrutura curricular não venha a deixar a decisão da divisão dos tempos letivos para História e Geografia a cargo das escolas. Já por diversas vezes defendemos que a História tem de fazer parte de um tronco comum obrigatório, com uma carga horária definida pela tutela para evitar arbítrios, incertezas e disputas entre colegas no mesmo local de trabalho.
E: Com esta decisão, dá-se o devido valor à disciplina de História ou ainda há mais para fazer?
RH: Deram-se dois primeiros passos significativos - a autonomia científica e disciplinar da História e, também, o aumento da sua carga horária. Sobre a autonomia nada está ganho, enquanto o modelo de formação inicial de professores, que foi aprovado em 2007, não for alterado e não for legislada uma formação autónoma para os professores destas duas áreas científicas e disciplinares. Em 22 de fevereiro de 2007 foi publicado o Decreto-Lei n.º 43/2007 sobre o Regime Jurídico de Habilitação Profissional para a Docência, contrariando os pareceres das associações profissionais e das universidades que ministram a formação inicial de professores. Este decreto-lei criou novos domínios científicos bidisciplinares que não existem nas universidades - não há licenciatura em História e Geografia (há uma licenciatura em História e há uma licenciatura em Geografia). Qualquer pessoa, com qualquer licenciatura, pode candidatar-se a esta formação, desde que faça previamente 120 créditos no conjunto das duas áreas disciplinares (nenhuma com menos de 50 créditos, o que equivale aproximadamente a nove disciplinas semestrais de cada área).
Os professores de História e de Geografia têm-se mobilizado no sentido de reverter esta situação que prejudica a formação científica e profissional dos novos docentes. Foi entregue na Assembleia da República, em dezembro de 2011, uma petição que pretende que a habilitação profissional para a disciplina de História passe a ser concedida pelo grau de mestre em Ensino da História e que a habilitação profissional para a disciplina de Geografia seja concedida pelo grau de mestre em Ensino da Geografia.
Quanto à carga horária, esperemos que venha a ser ajustada nas próximas fases desta revisão curricular para nove tempos de 45 minutos em todas as escolas, o que corresponde a um bloco de 90 minutos e um tempo de 45 minutos para o 7.º, 8.º e 9.º anos de escolaridade.
E: A reorganização curricular, que está em discussão pública, toca nos pontos essenciais ou é pouco consistente?
RH: A revisão é, como foi explicitado, intercalar e está sujeita a discussão pública até 31 de janeiro. Esperamos que a partir dessa discussão se possa repensar, em conjunto com os professores, esse novo desenho curricular dos ensinos básico e secundário. Concordamos com o senhor ministro da Educação quando diz que é necessário fazer as reformas necessárias por etapas, pois nada prejudica mais a vida das escolas que as constantes mudanças a que tem sido constantemente sujeita toda a comunidade escolar desde há alguns anos.
E: A APH vai apresentar sugestões no período de consulta pública?
RH: Iremos apresentar sugestões que passam, algumas delas, pelo que já foi referido: total independência da área científica e disciplinar da História; que a História integre um currículo nacional obrigatório, com tempos curriculares definidos pelo Ministério da Educação e Ciência; que seja revogado o atual Decreto-Lei n.º 43/2007 sobre a formação inicial dos professores, revalorizando a formação científica e didática dos futuros professores de História.
E: Tem defendido menos alunos por turma... É uma questão importante?
RH: É fundamental para um trabalho mais eficaz com os alunos e não foi por acaso que houve uma petição neste sentido que reuniu mais de 18 000 assinaturas. A média atual é de 28 alunos por turma, o que inviabiliza um trabalho sério de diferenciação e individualização dos diferentes alunos, contribuindo para uma maior desigualdade. Há muitos professores do 3.º ciclo do ensino básico que têm mais de 200 alunos - quando têm oito ou nove turmas. É difícil dessa forma desenvolver um trabalho colaborativo em que os alunos aprendam a "pensar historicamente", isto é, a trabalhar fontes diversas, confrontando essas fontes, criticando-as e aprendendo a retirar delas as suas próprias conclusões, tornando as aprendizagens mais consistentes.
E: Português e Matemática também terão mais horas. Uma boa opção?
RH: Esta nova proposta de revisão curricular não prevê mais horas para a Língua Portuguesa e para a Matemática. Estas duas disciplinas já aumentaram em muito a sua carga horária. A diferença entre as aulas previstas no 3.º ciclo do ensino básico entre Língua Portuguesa e História é abissal: no primeiro período do atual ano letivo houve em média 80 tempos de 45 minutos para Língua Portuguesa contra 26 de História. E isso tem implicações diretas no modo como os alunos encaram o trabalho de determinadas disciplinas e tem implicações diretas na construção dos horários dos professores, uns muito mais sobrecarregados que outros. Consideramos ainda que determinadas competências da Língua Portuguesa podem ser perfeitamente desenvolvidas noutras disciplinas, como a História, que fazem um uso constante e intensivo da língua mãe.
E: Na sua opinião, os professores não podem agir como burocratas da educação. A responsabilidade é do sistema?
RH: O ensino, em geral, pode melhorar com formação contínua adequada às necessidades, específica e não generalista. Pode melhorar se se devolver aos professores a responsabilidade de agirem como intelectuais e não como burocratas da educação. Os professores foram sendo sobrecarregados com responsabilidades burocráticas que, efetivamente, lhes retiram o tempo que é necessário para ler, para pensar, para produzir materiais adequados às necessidades dos alunos, para ir a congressos, para perceber o que de novo se está a investigar. Essa burocracia aumenta exponencialmente com o trabalho de direção de turma - são inúmeros papéis a preencher que, na prática, não revertem em prol dos saberes e que não contribuem em nada para o progresso real dos alunos.
E: Os professores perderam autoridade com as sucessivas mudanças no setor?
RH: Muitos dos problemas com que professores e alunos se têm visto confrontados têm sido as mudanças constantes. A perda de autoridade dos professores tem muito a ver com a sociedade em que vivemos, que deixou de considerar o trabalho do professor (e o saber) como algo fundamental e que desinvestiu na educação - quando diminuímos o grau de exigência na formação inicial dos professores (de todos os graus de ensino), quando há escolas que ainda não têm recursos suficientes para a sua população escolar docente e discente, quando se aumenta o número de alunos por turma, está a passar-se uma mensagem de desvalorização da escola e, também, do professor.
E: A avaliação de desempenho da classe docente é um processo que ajudará a separar o trigo do joio?
RH: Não sabemos como vai ser feita essa avaliação de desempenho. Mas esperamos que se revalorize a formação contínua específica, que se valorize a construção de um currículo que passa, muitas vezes, por formações científicas, por investigação, por produção de recursos, por produção de pensamento, por intervenção cívica e pedagógica concreta e com utilidade para a comunidade educativa.
E: O PSD, na campanha eleitoral, prometeu menos burocracia no sistema educativo... Acha que vai cumprir?
RH: Esperamos que se cumpra, de facto, embora isso não seja ainda visível nas escolas. Estar mais tempo na escola, não poder participar em formações científicas, a não ser que se realizem durante o fim de semana, ter uma componente não letiva obrigatória, são diretivas que não se têm traduzido num trabalho de maior qualidade.
E: Com os cortes orçamentais previstos para a Educação em 2012, receia que o setor retroceda, que haja projetos que fiquem pelo caminho?
RH: Receamos pela escola pública. Com todos os problemas existentes que nela se verificam é ainda a melhor opção, ainda é a que permite desenvolver um trabalho mais democrático com todos os alunos, ainda é aquela que permite desenvolver diferentes competências, diferentes saberes, que mais respeita o princípio da igualdade. Critica-se a escola pública como se só ela fosse ineficaz.
Mas como é que a escola pública pode preservar valores que a toda a hora são desrespeitados? Como é que a escola pública pode ser eficaz se diminuem os recursos financeiros, provocando fortíssimos constrangimentos com equipamento técnico e pessoal não docente? Não nos esqueçamos da constatação que António Candeias fez sobre a evolução das taxas de alfabetização de 1900 a 1991, em Portugal: "a sociedade portuguesa entrou no século XXI com taxas de alfabetização semelhantes àquelas com que as regiões do Norte e do Centro da Europa entraram no século XX". Estamos atrasados um século e será necessário continuar a investir na escola pública, porque é ela que pode contribuir para diminuir as grandes desigualdades sociais e culturais.
E: O que espera deste Ministério "comandado" por Nuno Crato?
RH: Nuno Crato referiu estas mudanças como "cirúrgicas". No entanto, já se percebe que houve desinvestimento no ensino artístico e já se percebe que o "saber fazer" foi preterido pelas aquisições. Deve haver um equilíbrio entre o saber e o saber fazer e era útil perceber que desempenhos eram esperados no final de cada ciclo de escolaridade. O ensino por competências tinha virtudes que podem e devem ser aproveitadas. A lógica que presidia à competência era a de uma aptidão que se desenvolvia progressivamente, era a de processo. No caso da História, as competências essenciais que se desejava desenvolver eram transversais à aprendizagem e passavam, por exemplo, por interpretar fontes com perspetivas diferentes, pela compreensão da evolução da sociedade e dos contributos de atos individuais e coletivos, pela contextualização no tempo e no espaço, trabalho que partia sempre dos conteúdos, era sustentado por eles.
Foi igualmente dito que as metas de aprendizagem vão ser reformuladas e que nessa reformulação se vai ter em conta não só os conteúdos mas, também, as capacidades que se devem desenvolver. Esperamos que sim, que se equilibre, de algum modo, o conhecimento e a aprendizagem.
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