Eduardo Sá
O Estado não está a cumprir a lei no que respeita à proteção das crianças em risco, acusa Eduardo Sá. Em entrevista, o psicólogo lança duras críticas ao caso do desaparecimento de Rui Pedro que veio demonstrar que, em Portugal, há crianças de primeira e crianças de segunda. Os meios mobilizados, comparativamente aos de Maddie McCann, foram prova disso.
Estão. Não digo isso pelo facto de o Governo e a oposição as terem
transformado numa espécie de conta poupança reforma. Acho até divertido
que se fale de tudo e mais alguma coisa nas várias campanhas –
presidenciais incluídas – e as questões das crianças e a política de
fundo para a família nem sequer exista. Portanto, o que é que a mim me
preocupa? Preocupa-me esta ideia complemente absurda de crescimento, que
dá a entender que as crianças têm que ser jovens tecnocratas de fraldas
antes dos seis, têm que ser jovens tecnocratas de mochila depois dos
seis e têm que ser jovens tecnocratas de sucesso ao entrarem na
universidade para que, finalmente – como se fosse uma linha de montagem
–, saíssem todos mestres. Mestre é a designação mais vergonhosa que eu
já vi para um título académico, porque é um título que reconhecemos aos
sábios.
Andamos a enganar os jovens?
Isto é o cúmulo da publicidade enganosa. Explicar a miúdos com 22 e 23 anos que são mestres, de maneira a esperar que eles sejam, de preferência, ídolos antes dos 30… Anda toda a gente num registo eufórico e doente, que não percebe que as pessoas precisam de tempo para crescer. Acho engraçadíssimo quando dizem com orgulho que no jardim-de-infância há crianças que já sabem ler e escrever, mas não é isso que as torna mais sábias. Às vezes, as pessoas confundem macacos de imitação com crianças sábias. Acho engraçadíssimo quando as crianças não podem errar – eu julgava que errar era aprender. Mas não: as crianças têm que ter notas que são insufladas sabe Deus pelo quê. Vivem empanturradas em explicações. Se os pais puderem utilizar todo o tempo que a escola coloca ao serviço das famílias, elas podem passar 55 horas por semana na escola… Estamos a espatifar a infância das crianças, a espatifar a adolescência e, depois, com um olhar absolutamente cândido, dizemos que elas têm défi ces de atenção.
Existe a ideia que as pessoas mais escolarizadas são pessoas mais educadas?
Vive-se com essa a ideia. E peço desculpa, mas as pessoas, com toda a
boa vontade do mundo, estão a tornar as crianças mais estúpidas. Se as
crianças não aprendem a tolerar as frustrações, nunca hão de ser
engenhosas e nunca hão de aprender com as dificuldades. A dor dói,
magoa, mas é uma oportunidade de crescimento e não há dores que venham
por bem. As dores são as grandes oportunidades para nos interpelarmos e
para nos transformarmos. E nós não damos oportunidade às crianças para
serem crianças. Queremo-las como fossem clones daquilo que nós sonhámos
ser, mas que não fomos capazes. E, nestas circunstâncias, tem que haver
alguém com algum bom senso que diga “tenham cuidado que estão a
comprometer tudo”.
As crianças brincam pouco?
As crianças brincam de menos. Se houvesse em Portugal um Ministério
da Educação digno desse nome, teria outro tipo de cuidado com os
recreios das escolas. Os recreios das escolas públicas são uma vergonha.
Não reúnem condições indispensáveis para brincar. As escolas deviam ter
recreios cobertos, mas brincar é, para os governantes, uma atividade
tipo primavera-verão: quando está frio e a chover, as crianças não podem
ficar nas salas, não podem ficar nos espaços comuns, não podem andar na
chuva… Brincam nos beirais, que é uma preparação para os desportos
radicais. Mas, na falta de cuidados em relação às crianças, há um
exemplo que é o mais delicioso do mundo: não compreendo porque é que as
crianças têm uma disciplina de Educação para Saúde e depois,
nomeadamente nas escolas públicas, as casas de banho dos alunos não
cumprem as condições indispensáveis em termos de saúde pública. Para a
ASAE, a segurança alimentar é importante, a contrafação é importante. As
crianças, não.
O que lhe apraz dizer sobre toda esta polémica em torno dos contratos de associação?
Não me choca que o Estado, quando não consegue cumprir os seus
compromissos, possa delegá-los noutros. E possa, na sequência disso,
fazer os contratos de associação que acha que deve fazer. Até aqui, isto
é pacífi co. Agora, há dois aspetos que me parecem incontornáveis:
quando as pessoas querem negociar de forma séria e leal, negoceiam a
tempo e horas e não me chocaria se hoje estivéssemos a negociar uma
transformação para daqui a dois anos, de maneira a que se possam pensar
alternativas. Não acho que o Governo tenha estado bem neste aspeto.
Agora, choca-me que depois as crianças sejam instrumentalizadas de uma
forma absolutamente indecorosa e sejam trazidas para discussões que não
são bem razoáveis. Instrumentalizar campanhas presidenciais à esquerda e
à direita com este tipo de questões, peço desculpa, é um bom serviço em
favor do obscurantismo.
Cada vez mais se ouve falar de crianças maltratadas…
Felizmente.
Tal não significa que haja maior número de crianças nessa condição?
Por amor de Deus. Estas são as melhores famílias que a humanidade
conheceu. As atuais. O que significa que os nossos filhos estão
seguramente melhores.
O que leva um pai a maltratar um filho?
(suspira) Muito sofrimento acumulado. Pessoas doentes sempre
existiram ao longo da história. O sistema judicial é que não. É uma
conquista importante da humanidade e todos nós devemos exigir que um
sistema judicial, dedicado às crianças, seja um bocadinho de sistema
judicial e que tenha um componente significativo de saúde, nomeadamente
de saúde mental. Que nós aceitemos que os pais maltratem, não podemos
aceitar; que nós aceitemos que o Estado, como garante de princípios
fundamentais, seja omisso na proteção das crianças, é que eu acho que
seja inadmissível. Quando grande parte das comissões de proteção tem
pessoas da maior generosidade que estão em part-time ou em voluntariado,
isto diz bem o que é a proteção das crianças em Portugal. Quando nós
admitimos que haja crianças que, no fundo, estão sinalizadas como
estando em perigo, mas estão em perigo durante anos… É aqui que eu acho
que temos que parar e perceber o que é que queremos da proteção das
crianças. Porque o Estado não cumpre a lei. Em média, as crianças estão
confiadas aos centros de acolhimento cinco anos. O Estado comete
ilegalidades sobre ilegalidades a esse nível.
Mas porque é que se maltrata?
Repare: ainda hoje há pessoas que suspiram pela escola do antigo
regime, que era uma escola exemplar, onde cada erro representava uma
reguada. Muitos destes pais tiveram escolas e famílias muito
autoritárias. É por isso que os pais hoje, quando se trata de dizer que
“não” a um filho, confundem autoridade e autoritarismo. E passam a vida
quase a pedir desculpa com a ideia de que o “não” traumatiza. A
autoridade é um exercício de bondade; o autoritarismo é um exercício de
prepotência. A prova de que nós fomos crescendo com estes equívocos é um
bocadinho esta. Ainda há pais maltratantes.
De todos os estratos sociais, portanto…
De repente, até parece que os pais da classe média não maltratam. Há
crianças que andam em colégios para meninos com “pedigree” e chegam lá
todos os dias com marcas de serem batidas. E quando têm 80 por cento nos
testes ficam em pânico, porque são aterrorizadas constantemente… Essas
crianças estão em perigo. Porque é que as comissões nunca protegem esse
tipo de crianças? Temos que proteger mais e proteger melhor. E os
tribunais têm que ser mais duros em relação aos pais que maltratam e
negligenciam porque, por mais doentes que eles estejam, não têm o
direito de desbaratar todos os recursos saudáveis dos filhos.
Como comenta caso do Rui Pedro, desaparecido há 13 anos?
Uma vergonha! É uma vergonha que o Estado – e não estou a falar dos
tribunais nem da justiça – o Estado, como garante do exercício da
justiça, mobilize os meios que mobilizou para a menina do casal McCann e
não mobilize os mesmos meios para todas as crianças desaparecidas. Não
há em Portugal, não pode haver num Estado de Direito, crianças de 1.ª e
crianças de 2.ª. não é justificação que alguns elementos de aparelho de
Estado digam “não averiguámos porque não havia meios”. Isto é ainda é
mais ofensivo para os cidadãos que, com um esforço terrível, pagam
impostos resultantes da má governação dos governos dos últimos 30 anos.
Estamos a falar da vida de uma criança que não sabemos onde está; se
está viva ou não. Estamos a falar de pais que há 13 anos,
desesperadamente, apelam de todas as formas possíveis por ajuda. E eu já
perdi a conta a comentários de pessoas que comentam tudo e que até em
relação ao equilíbrio mental da mãe já se dirigiram. Meus Deus! Quem é
que é o pai de bom senso que, ao fi m de 13 anos nestas condições,
consegue estar equilibrado? Ninguém.
O Estado falhou neste caso?
Aquilo que o Estado mobiliza quando uma criança desaparece nunca são
os meios necessários e sufi cientes, porque parte sempre do pressuposto
que não é uma questão tão urgente como o crime económico e outras coisas
do género. Acho isto da maior gravidade. E acho, sobretudo, da maior
gravidade que um país inteiro pare à procura de uma criança – e acho
muito bem –, mas como se as crianças tivessem nacionalidade. Compreende?
Como é que podemos esperar que aqueles pais aceitem uma disparidade
desta natureza, como se os filhos dos outros fossem filhos de 1.ª e os
filhos deles fossem filhos de 2.ª. Acho uma vergonha. E aquilo que é
ainda mais vergonhoso é que este caso não tenha merecido por parte das
figuras do Estado, ao menos isto: um pedido de desculpas aos cidadãos e
tomarem isto como pretexto para configurarem outra forma de atuação para
evitar que isto se repita.
É possível ensinar as pessoas a serem bons pais?
É. Os pais precisam de falar pelos filhos: eles sabem muito bem que
quem nos ama diz-nos por atos (e por omissões) qualquer coisa como:
“sente-me em ti, pensa por mim e fala por nós”. E, de facto, os pais às
vezes sentem, pensam, mas não falam. Não falam nem por eles, nem pelos
filhos. Ensinar pode fazer-se de maneira divertida, pode significar
dizermos aos pais que estão obrigados a dar uma hora por dia aos filhos.
Uma hora de mãe ou uma hora de pai, faz muito melhor do que o óleo de
fígado de bacalhau para as crianças crescerem. E é necessário dizer aos
pais que têm fazer, pelo menos, uma asneira de oito em oito horas. Os
pais que não fazem asneiras não são bons pais.
Costuma dizer que as pessoas têm o coração apertado até ao último botão. É o que se passa com os pais?
Acho que somos todos mal-educados. Todos tivemos uma educação
judaico-cristã, uma educação positivista que, em muitos aspetos foi
importante, mas que criou um vício de forma muito cartesiano que nos
leva a imaginar que, quanto mais racionais, melhores pessoas. Fomos
todos mal-educados para as emoções. Ainda continuamos a achar que ter
raiva é uma coisa feia, como se a raiva não fosse o melhor ansiolítico
do mundo. Quem assume que tem ódio de vez em quando? E o ódio só
acontece quando alguém que nos ama nos magoa muito. As emoções são um
GPS fantástico que temos na nossa vida e nós somos educados para
reprimir as emoções. Quando reprimimos as emoções, além dos efeitos
neurológicos que isto provoca, vai introduzir uma coisa que é pior: à
medida que não transformamos as emoções em palavras, passamos a ficar
partidos ao meio. Sentimos tudo, somos tremendamente intuitivos, mas
depois deixamos de aprender a falar. Quanto menos somos educados para as
emoções, menos educados nos tornamos para as palavras e mais começamos a
adoecer.
Somos, então, mal-educados para o amor?
Somos também mal-educados para o amor. Mas para que é que é preciso
educação sexual nas escolas? Vai-me desculpar, a sexualidade faz muito
bem à saúde. Mas muitas vezes esta “educação moral e religiosa parte II”
está a partir do pressuposto de coisas erradas. Educar para o amor é
uma coisa muito mais séria. É muito importante dizer o que é o aparelho
reprodutor e falar de meios contracetivos… nada disso merece questão.
Mas o que eu gostava é que também se explicasse o que é que são as
relações amorosas. Devia ou não devia ser proibido casar com o primeiro
namorado? Só devia. Quer dizer: passamos a vida a dizer que errar é
aprender, mas nas relações amorosas temos que acertar à primeira. Onde é
que isto já se viu? Isto é mentira. Se queremos educar para as relações
amorosas, devíamos dizer que devia ser proibido casar para sempre.
Não devia ser para sempre?
São todas para sempre. Mas o que eu gostava que as pessoas
percebessem é que quanto mais importante é uma relação mais frágil se
torna. Porque exigimos às pessoas que amamos – e bem –aquilo que não
exigimos a mais ninguém. E quanto mais importante for uma relação, mais
preciosa ela é. Era muito bom que nós dissemos que todas as relações
morrem, sobretudo as mais importantes e, sobretudo, se foram
maltratadas. No fundo, educam-nos para nós abotoarmos o coração até o
último botão. E, às vezes, as pessoas despem-se facilmente por fora e
têm dificuldade em perceber que o grande desafio da vida é despirmo-nos
por dentro. É darmo-nos a conhecer por dentro.
Tem uma boa relação com os seus alunos de Psicologia da Universidade de Coimbra?
Gosto muito deles. Gosto muito de dar aulas, mas não gosto do poder
universitário. Aprendo muito quando dou aulas, porque sinto-me obrigado a
transmitir uma experiência muito diversificada e de muitos anos, a ser
claro e simples. Nem sempre é uma relação/opção fácil, mas quando eles
percebem que somos capazes de gostar deles e que conseguimos transformar
um universo muito complexo como o da vida mental numa leitura
relativamente simples, torna-se uma relação muito boa. Não perco de
vista que eles são colegas mais novos.
Do que não gosta no poder universitário?
Às vezes,fico meio sem jeito ao dar-me conta de como, em muitos
momentos no meio universitário, o bom gosto e a boa educação faltam. E
devo dizer-lhe que faltam onde não deviam faltar. Mais do que integrar
conhecimentos, as escolas servem para nós ficarmos melhor educados e
para nos tornamos melhores pessoas e há muitos episódios soltos, em
escolas universitárias – não só em Coimbra – em que os professores são
um bom exemplo daquilo que não é boa educação. E depois há um aspeto na
vida universitária que me preocupa: existe uma diferença profunda entre
os sabichões e os sábios. E há densidade de sabichões por metro quadrado
na vida universitária que me incomoda. Acho que os sábios mudam o
mundo. Não precisamos de ser altivos ou arrogantes para merecermos
respeito.
Não é um meio que convide a pensar?
O poder universitário não é um meio onde a sabedoria seja premiada.
Não é. E, às vezes, não é um meio que convide a pensar, onde as pessoas
se possam interpelar de forma vertical e leal. Às vezes, não é um meio
leal, o que eu acho incompreensível.
Teve uma infância feliz?
Gostava de ter brincado muito mais. Gostava de não ter passado por
algumas situações difíceis que vivi. Poderia ser muito melhor,
seguramente.
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