quinta-feira, 6 de junho de 2013

Nem quero acreditar!


Nem quero acreditar

Queridos Carequinhas:
Nem estou em  mim. Nem sei como começar a explicar o que sinto se, o que sinto, é de discrição impossível. Hoje fechou-se um ciclo, hoje ganhei uma tranquilidade e hoje os meus pesadelos, já crónicos há dez anos, acalmaram. Por onde é que começo?
Há pessoas que nos marcam mais, talvez, do que nós as marcamos a elas e por uma quantidade de razões. A Ana Luísa, teve um impacto brutal na minha vida e certamente ela nem sabe disso. Quando fiquei internada pela primeira vez e, sem saber o que se passava comigo, conheci a Ana, uma menina da minha idade com leucemia, que já lá estava há algum tempo e com quem ficaria a partilhar quarto. Foi a primeira criança que conheci com cancro, a primeira com quem partilhei um cancro e a primeira que me explicou, com os seus próprios conceitos, o que me iria acontecer. Despachada, divertida e, a maior imagem que tenho dela, corajosa, disse-me que eu ficaria sem cabelo e para não me entusiasmar muito com as visitas, porque elas apareciam muito no inicio mas que depois se esqueciam de nós. Passei a adorá-la. Já naquele tempo, venerava a frontalidade e a capacidade de dizermos aos outros não o que eles queriam ouvir, mas o que era preciso ser dito. Sensível, percebeu que tinha ficado nervosa com as explicações um quanto bruscas dela e, descansou-me a alma, dizendo, que olhando para mim assim de repente, parecia que eu até não iria sofrer muito.
A Ana falava e eu ouvia (estranho, certo!?) mas quando encontramos pessoas que nos fascinam, preferimos absorver o que dali sai, do que dizer o que quer que seja. A Ana já estava internada há muito tempo, não ia tantas vezes a casa quanto eu e, quando foi, chorou emocionada porque “nem acreditava” que iria sair dali. Todos os enfermeiros conversavam com ela, não era anti-social como eu e, imagine-se, tinhas amigos em todos os quartos. Desenrascada, foi a doente que eu gostava de ter sido, implacável e guerreira. E agora, vocês perguntam, como perdi eu o contacto de alguém que admirava tanto?
Medo. Quando soube da morte de outros companheiros, decidi que não queria saber mais de nenhuma morte e deixei de visitar a Ana e os outros doentes que ainda estavam internados. Decidi que jamais aceitaria a morte de uma guerreia como a Ana, por isso, na minha cabeça, ela estaria sempre viva e saudável. Dez anos depois, a vida deu-me uma nova oportunidade de perceber que os medos impedem que vivamos grandes momentos, dez anos depois, através do Cancro com Humor, encontrei a Ana! Lembrava-se do meu diário e eu nem consigo explicar como estou grata e feliz por ela estar viva, gira e saudável. Há coisas boas, neste mundo tão cruel. Há coisas boas e hoje sinto que os meus pesadelos irão acalmar porque a Ana está bem e não só no meu coração.
Marine Antunes
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